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ESTÓRIA DE UMA CADELINHA


Bolinha

          Eu trabalhava numa empresa de ônibus.  Na garagem da empresa, além do prédio administrativo, havia um grande pátio para estacionamento dos ônibus e outros veículos de apoio.  Havia também um refeitório anexo, e um local reservado para o estacionamento de carros particulares.  Ao lado do estacionamento, um monte de ferragens e pneus velhos.  Este é o cenário onde se desenrola a nossa estória. 


          Foi numa chuvosa manhã de verão, quando notei pela primeira vez, no pátio dessa garagem, a presença singular, de uma cadelinha "vira-lata".  Arredia, medrosa, escondendo-se por debaixo dos veículos estacionados, à aproximação de qualquer pessoa.  Sabendo-se uma intrusa, temia ser enxotada com violência impiedosa a que devia já estar acostumada. 

          Não sei dizer há quanto tempo, ou há quantos dias, escolhera aquela garagem para seu refúgio, mas é certo que fora atraída pelo movimento do refeitório, satisfazendo-se com alguma comida que, à distância, lhe atiravam. 

          Era dessa forma, que as pessoas tratavam aquela cadelinha magra, de aparência asquerosa, pernas tortas e fracas, portando uma barriga enorme, maior que o corpo, e tetas apontando para o chão.  Na costumeira estratégia de esconder-se das pessoas que dela se aproximavam, a cadelinha muitas vezes metia-se por entre os latões sujos de óleo, e seu corpo ficava impregnado de uma mistura de óleo e terra.

          Sempre gostei de animais, mas não sei porque, aquela cadelinha vira-lata me sensibilizou de forma especial, apesar de sua aparência nada agradável.  Fato curioso também, é que os dias passavam, estas cenas se repetiam, e nunca se lhe ouvira um latido.  Parece que na sua humildade, o seu instinto lhe dizia para não incomodar as pessoas, ou poderia ser expulsa por perturbar o silêncio que só podia ser quebrado pelo barulho dos motores dos veículos. 

          Não tive sucesso na minha primeira tentativa de aproximação da repelente criatura;  apavorada, escondia-se por debaixo dos veículos estacionados, e seu coração devia bater em ritmo disparado, num misto de ansiedade e pavor. 

          Mas aos poucos, fui ganhando a sua confiança, pois eu tentava de todas as formas, persuadi-la, amenizando o que mais lhe doía, ou seja, a fome.  Mostrava-lhe comida.  Ela se aproximava desconfiada.  Qualquer gesto meu, mesmo de afago, ela se esquivava, amedrontada. Esperava de longe, pela comida.  Um pedaço de pão, de queijo, ou de biscoito.  Apesar de gostar de carne, ela não era muito exigente, ou não tinha mesmo escolha para comida.  Desta forma, não foi difícil convence-la de que eu não pretendia molesta-la. 

          Agora, quando me via, já se aproximava com toda humildade que lhe era característica.  Ela não tinha dono, nem nome.  Chamei-a carinhosamente de "Bolinha", por causa da sua enorme barriga.  Parece que ela gostou do nome, porque bastava agora pronuncia-lo para que seus olhos brilhassem e sua boca mostrasse os dentes num lindo sorriso. 

          Os dias foram passando, e a Bolinha já perdera um pouco daquele aspecto horripilante, e já ganhara também a simpatia de mais algumas pessoas na empresa.  O próprio cozinheiro junto ao refeitório, lhe preparava uma refeição regular na hora do almoço, com restos de comida. 

          Com o passar do tempo, eu já me fizera um amigo da Bolinha.  Todos os dias, na parte da manhã, chegando ao trabalho, eu era recebido festivamente pela nossa amiga.  Ela me acompanhava até um certo limite do pátio, numa distância que separava a calçada do escritório.  Ali ela parava, e ficava me olhando, até que eu desaparecesse, adentrando ao prédio.  à noite, ao término do meu expediente, de longe eu acionava as travas elétricas do meu carro, com um dispositivo de controle remoto, que produzia um apito característico.  Esse apito era reconhecido pela cadelinha, que vinha correndo ao meu encontro, de forma engraçada, com suas perninhas tortas. 

          Conversávamos um pouco, e muitas vezes, eu já sentado ao volante, mas com a porta do carro aberta, ela colocava suas patas dianteiras sobre o banco e apoiava a cabeça sobre o meu colo, num gesto de atenção e carinho de despedida.  Minhas roupas sempre ficavam sujas com esses agrados.  Sujeira de terra ou de óleo, mas eu não ligava.  Afinal, o expediente já terminara.  

          às vezes, na despedida eu lhe dava alguns biscoitos ou queijo, mas isto não era muito frequente, porque a Bolinha já não era tão esfomeada como quando chegou na empresa.  Apesar de contar praticamente com apenas uma refeição diária, perece que ela já se habituara a este racionamento. 

          Os dias passavam, e nossa amizade era percebida e comentada pelas pessoas na empresa. As mais sensíveis compreendiam e me ajudavam a cuidar da Bolinha.  Até prepararam uma cama especial para ela, feita de caixotes, aguardando os filhotes que estavam para nascer.  Já as pessoas insensíveis, faziam pilhérias com a "filha" que eu havia arranjado.  Eu não ligava.  Continuava como sempre, dando-lhe a minha atenção. 

          Certa noite, na despedida costumeira, notei que a Bolinha não estava muito bem.  Mas de qualquer forma, ela se mostrou como sempre, atenciosa e amiga.  Fui embora preocupado, e cheguei a comentar este fato com minha esposa. 

          No dia seguinte, fui para o trabalho ansioso para saber como a cadelinha havia passado a noite, e se já estaria melhor.  A Bolinha desta vez, não veio me receber.  Senti crescer minha preocupação, mas qual não foi minha surpresa, quando vieram com alegria me contar, que os filhotes haviam nascido!  Seis lindos filhotes, dois machos e quatro fêmeas, e lá estava ela, a Bolinha, na sua cama de caixotes, zelosa, ciumenta e orgulhosa de sua prole. 

          Isto foi, na manhã do dia 9 de abril 1997.  Nesta manhã, e durante o dia todo, a Bolinha não saiu de sua cama, sequer para uma refeição.  Apenas na manhã seguinte, a Bolinha veio me receber, e dando pulos e uivos de alegria, parece até que ela queria me dizer: - meus filhotes nasceram, como são lindos! Você viu? Au, Au, au...  Au, au, au...

          Nos dias que se seguiram, Bolinha recebia visitas até de pessoas que antes não se importavam com ela.  Todos queriam ver a ninhada de filhotes.  Mas outro fato curioso, é que a Bolinha não deixava ninguém, a não ser eu, seu amigo, se aproximar dos filhotes.  A todos rosnava e avançava ameaçadora.  Mas eu tomei em minhas mãos, cada um dos lindos filhotes, sem qualquer protesto da Bolinha. Ela apenas olhava atenta para os meus gestos.  Que lindos filhotes!  Quase todos brancos por inteiro, e apenas dois, tinham algumas manchas herdadas da mamãe Bolinha, que era branca, porém com acentuadas manchas pretas e marrons.

Veterinário: os cachorrinhos nasceram lindos e famintos.  Bolinha, mãe dedicada, não se afastava deles.  Amamentava-os durante quase todo o tempo.  Passado quase um mês, certa noite, como de costume, fui despedir-me, agora de toda a família.  Mas nesse dia, a mamãe Bolinha, não estava bem. Eu a encontrei fora de sua cama, deitada no pátio.  Queria levantar-se para vir ao meu encontro, mas estava fraca.  Deitou-se aos meus pés, com as pernas esticadas, duras, e apenas abanava o rabo. 

          Fiquei apavorado.  Pensei que a Bolinha estivesse morrendo.  Fui para casa, contei à minha esposa, e juntos, saímos de carro à procura de um veterinário.  Enquanto e dirigia, minha esposa tentava pelo telefone celular, ligar para algumas clínicas veterinárias.  Mas sem sucesso.  Àquela hora da noite, por volta das 20:00 horas, parece que todos os veterinários já não trabalhavam.  Por sorte, passamos diante de uma clínica cujas portas estavam abertas.  Ótima clínica, por sinal. Explicamos o acontecido, e o veterinário se prontificou atencioso, em atender a Bolinha na garagem da empresa. 

          Levou seu assistente, e sua maleta de socorros.  Fomos encontra-la  à  uma certa distância do local onde eu a havia deixado.  Parece que ela tentara se locomover, mas não se aguentou sobre as pernas.  Estava deitada do mesmo jeito, com as pernas estiradas e duras.  O assistente do veterinário a tomou nos braços, naquele local do pátio meio às escuras, e a levamos para uma sala iluminada, no interior do prédio do escritório. 

          O médico veterinário a examinou, e aplicou-lhe uma injeção na veia da perna.  A reação, foi quase instantânea;  Bolinha se reanimou, conseguiu mover-se e apoiar-se sobre as pernas.  Segundo explicou o médico, a Bolinha havia sofrido um "eclampse" pós-parto;  por ser muito dedicada, deixava que os filhotes lhe sugassem, insaciáveis, mas a comida que ela ingeria não tinha as qualidades necessárias ao próprio sustento e dos filhotes.

          Recomendou alguns medicamentos, complexo de vitamina e cálcio para a Bolinha, o que segui à risca, misturando-os em sua comida, nos dias que se seguiram.  O veterinário admirou-se do tamanho dos filhotes, que aparentavam ser de raça não definida, porém de um porte muito maior que o da mãe.  Recomendou também, em razão do seu diagnóstico, que os filhotes deveriam ser retirados da mamãe Bolinha, ou ela não teria saúde bastante, para amamenta-los. 

          Me deu pena retirá-los, e não o fiz imediatamente à sua recomendação.  Passados três ou quatro dias, sob um olhar de pesar e de protesto da Bolinha, retirei três dos filhotes, e os distribuí a alguns amigos dentro da empresa.  Bolinha parece que se conformou com o desfalque, e continuou, zelosa como sempre, cuidando dos três restantes.

          Continuei sempre atento ao estado de saúde da minha cadelinha. E assim foi que, passados mais alguns dias, notei outra vez que ela não estava bem.  Novamente apresentava um estado de fraqueza.  Telefonei para o veterinário, que aconselhou deixar a Bolinha internada naquela tarde e naquela noite, até o dia seguinte em sua clínica, para uma observação mais prolongada e para devida medicação. 

          Coloquei-a no meu carro, e a levei para a Clínica.  Bolinha era uma cadelinha mansa e obediente.  Durante a viagem de carro até a clínica, ela me dirigia um olhar confiante, porém indagador: - para onde está me levando?  Eu conversava com ela enquanto dirigia, e parece que ela me entendia.  Deixei-a na clínica.  Voltei à empresa, para recolher os três filhotes restantes e os levei para casa.  Eram três fêmeas.  

          Duas destas, ficaram com vizinhos nossos, e a última fêmea a quem chamamos de Kelly, ficou sob os cuidados da minha esposa.  Por sinal, Kelly era o filhote mais parecido com a mamãe Bolinha, o que intuitivamente me agradou. 

          Bem, agora eu havia finalmente cumprido a recomendação médica.  Havia retirado todos os filhotes, aproveitando a ausência da mãe, que ficara internada na clínica. 

          No dia seguinte, quase ao anoitecer, fui buscar a Bolinha na clínica, prontamente recuperada com as medicações aplicadas pelo seu médico particular.  No meu carro, a caminho de volta para a empresa, Bolinha se mostrava inquieta e ansiosa.  Saudade dos filhos.  Chegando na empresa, estacionei o carro e abri os vidros acionando um dispositivo elétrico.  Bolinha não esperou que eu lhe abrisse a porta.  Saltou pela janela, e disparou em direção onde estariam seus filhotes.  Começou a procurá-los com desespero, farejando por todos os cantos e lugares. 

          Senti um aperto no peito, com pesar pela cena que eu presenciava.  Me senti culpado, e tratei de consolar a Bolinha, mas não sei se ela me entendeu.  Fui embora, amargando um certo remorso pelo indefeso animal. 

          Nos dias seguintes, Bolinha novamente se transformou.  Perdera sua imponência, seu orgulho. Era novamente uma cadela triste e humilde, por haver perdido os filhos. Mas o tempo é um remédio maravilhoso, e o próprio veterinário havia me falado que ela acabaria se conformando, e esquecendo os filhotes.  Disse também, que suas tetas, por falta de estímulo na amamentação, voltariam ao normal, pois estavam proeminentes, quase a esbarrar no chão. 

          De fato, pouco a pouco, senti a alegria voltar aos olhinhos brilhantes da cadela, e sua expressão de sorriso quando vinha ao meu encontro. 

A tragédia:  num certo dia, de uma terça-feira, precisei sair à rua dentro do meu expediente, para tratar de um assunto comercial da empresa.  Quando estava próximo do meu carro, que ficava estacionado no pátio, Bolinha veio ao meu encontro: - au! au! au!  Seu latido porém era de dor. 

          Bolinha não estava bem. Deitou-se aos meu pés, e notei que sua boca espumava.  No mesmo instante, coloquei-a no carro, e "corri" com ela para a clínica de animais.  O veterinário não estava. Seu assistente no entanto, o localizou pelo telefone, e ficamos aguardando.  Bolinha, sobre a mesa na sala da clínica, trêmula, parece que me ouvia chama-la pelo nome, pois ainda deu suas últimas abanadas de rabo.  Depois, começou a ter convulsões, gemidos, e por fim, sua batidas cardíacas cessaram. 

          Fiquei ali, com um nó na garganta, assistindo o estado agonizante da minha querida cadelinha.  Eu me sentia impotente, sem nada fazer, sequer para amenizar o seu sofrimento.  Quando o veterinário chegou, ainda aplicou-lhe uma injeção de adrenalina, mas advertiu que nada mais poderia ser feito para salvar a Bolinha.  Ela havia ingerido veneno, que alguém maldosamente lhe dera, ou então que ela haveria de ter encontrado, talvez fora da empresa, pois de vez em quando, costumeiramente saia para dar uma voltinha nas proximidades. 

          Foi este, o trágico e triste fim, de uma cadelinha vira-lata, que ficará por muito tempo, na minha lembrança.  A própria clínica, se encarregou de fazer a remoção do corpo da Bolinha. 

          Tenho, uma profunda reverência pela vida.  E se para nós, no aspecto filosófico-religioso, a vida não termina aqui, a vida de um animal também deve continuar em outro plano.  Assim, desejo que a Bolinha, onde quer que esteja, encontre uma vida mais feliz do que viveu aqui. 
Bolinha morreu, no dia 15/07/1997.

                                                                 

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